Não, não podemos esperar que o inferno esteja vazio

16/01/2024

A existência do inferno é um dos grandes escândalos da ideologia pós-moderna. Adolescentes bem-humorados, relativistas e perpétuos não suportam a própria ideia de inferno, porque isso vai contra sua religião (que eles nem sabem que têm). É por isso que, hoje, muitos, muitos "cristãos" progressistas simplesmente não acreditam no inferno. Abandonaram essa parte da fé como se fosse um pedaço velho, quebrado e inútil, sem perceber que a verdade e a fé não são negociáveis, é tudo ou nada. Como ensinou São Tomás, não se pode escolher algumas verdades ou partes da fé que sejam mais agradáveis e rejeitar outras, porque aqueles que o fazem estão, na realidade, abandonando completamente a fé e substituindo-a por suas próprias opiniões.

Por Bruno M

Isso é claro para quem ainda mantém a fé católica. Mas o que dizer da ideia que tem vindo a difundir-se em círculos supostamente ortodoxos de que podemos, e até devemos, esperar que o inferno seja vazio? É precisamente isso que o próprio Papa Francisco acaba de dizer quando entrevistado num programa de televisão italiano: "Gosto de pensar que o inferno está vazio. Sim, é difícil de imaginar. O que digo não é um dogma de fé, mas uma coisa pessoal minha: gosto de pensar que o inferno é vazio. Espero que sim!"

À primeira vista, é uma possibilidade admissível para um católico. Afinal, a Igreja canonizou muitos santos, garantindo-nos que estão no céu, mas não tem "anticanonizações" para declarar que determinada pessoa está no inferno. Além disso, as Escrituras ensinam que Deus quer que todos sejam salvos, por isso devemos desejar o mesmo. Que pessoa razoável pode desejar que alguém seja condenado? Portanto, enquanto defendermos a existência do inferno como uma possibilidade, parece razoável e até louvável esperar e confiar que, na prática e pela misericórdia de Deus, ele é vazio, não é? Não

A verdade é que esta ideia, que é muito recente na história da Igreja, é, na realidade, uma tentativa de estar na missa e a tocar ou, para dizer de uma forma mais evangélica, de servir dois senhores. Na verdade, ela possibilita permanecer, pelo menos aparentemente, na fé católica, mas ao mesmo tempo desfrutar de todas as vantagens obtidas por aqueles que simplesmente negam a existência do inferno. Ou seja, podemos resolver a repulsa instintiva que o inferno cria para nós, desativando-o, removendo o que há de horrível nele e transformando-o em uma possibilidade meramente teórica inofensiva. Ou seja, o círculo está quadrado, porque se torna possível professar tanto o catolicismo quanto o bondade-relativismo da adolescência perpétua.

De acordo com isso, o inferno seria real como ensina a Igreja, mas a verdade é que Deus é tão bom, tão avô em vez de Pai, que nunca ocorreria a Ele realmente enviar alguém para lá. Teoricamente, existem mandamentos e a lei natural, mas, na prática, todos serão julgados de acordo com suas próprias opiniões e não de acordo com a lei de Deus. Sustenta-se conceitualmente que Deus é Justo e que seremos julgados por nossas obras, mas confiando que, quando se trata disso, ninguém, em qualquer caso, será responsável por suas ações e podemos viver felizes e despreocupados como adolescentes perpétuos sem medo de sermos punidos por eles.

É fácil perceber que o que essa concepção faz é transformar o inferno no bicho-papão, no bicho-papão ou em personagens imaginários semelhantes. Durante séculos, as mães usaram-nas para ameaçar os filhos quando se comportavam mal, mas teriam sido as primeiras a ficar surpreendidas e horrorizadas se tivessem visto o bicho-papão passar pela porta. Que mãe quer que um filho, por pior que se comporte, seja sequestrado ou atormentado por um monstro ou um criminoso? Da mesma forma, Deus usaria o inferno para nos fazer comportar, como uma possibilidade ameaçadora e terrível, que na prática, no entanto, seria completamente imaginária, porque Deus nunca pune, muito menos para sempre. Não estou inventando isso, mais uma vez é o que o Papa Francisco afirma expressamente na Amoris Laetitia: "ninguém pode ser condenado para sempre, porque essa não é a lógica do Evangelho" (AL 297). Deve-se dizer, ao contrário, que essa ausência de condenação eterna é a lógica do pensamento pós-moderno e do bem, não do Evangelho.

Curiosamente, além de ser uma embaraçosa neutralização prática de uma doutrina da Igreja, que é relegada à categoria de mera possibilidade teórica, a verdade é que a premissa fundamental de toda essa ideia é falsa, pois, segundo a fé católica, o inferno não é vazio. É um dogma de fé que não é vazio.O que a Igreja ensina não é que pode haver alguém no inferno, mas que há de fato pessoas condenadas.

Quem são essas pessoas malditas que sabemos que já estão no inferno? Satanás e seus demônios. Como ensina o Quarto Concílio de Latrão, "o diabo e os outros demônios foram criados por Deus com uma boa natureza, mas eles se fizeram maus". São anjos bons que se rebelaram contra Deus e foram eternamente condenados. O Catecismo da Igreja Católica fala, de fato, do "caráter irrevogável de sua eleição", o que impossibilita que "o pecado dos anjos seja perdoado" (CIC 391). Ou seja, eles são os primeiros a serem condenados e, como ensina São João Damasceno, "não há arrependimento para eles depois da queda, assim como não há arrependimento para os homens após a morte". Com efeito, o próprio Jesus Cristo aparece no Evangelho dizendo no Juízo Final: «Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e os seus anjos» (Mt 25, 41).

Portanto, todas essas contorções modernas para tentar nos manter na bondade e no catolicismo são ridículas e inúteis. A fé da Igreja diz-nos que são e que a realidade não se conforma com as nossas expectativas de fazer o bem, porque, de facto, há condenados no inferno e não vale a pena confiar que ele é vazio. O problema não está nessa realidade concreta do inferno, mas no fato de que nós, ao assegurarmos que o que é verdadeiramente misericordioso seria outra coisa, estamos julgando a Deus, fingindo que somos mais misericordiosos do que Ele. Ai, tolos, quem somos nós para julgar a Deus? Somente a infinita misericórdia e a justiça infinita de Deus podem responder adequadamente àquela ferida mortal do pecado em nossa própria natureza, para a qual a triste bondade tola de nossa época não oferece nada mais do que uma pequena fita e um par de aspirina. Como a fé nos ensina, parte dessa resposta é o inferno, porque Deus sabiamente quis assim e porque Seu amor por nós inclui até mesmo nos dar a possibilidade de rejeitar esse amor.

Isso deve nos dizer que o que precisamos fazer é levar a fé a sério, não tentar neutralizá-la torcendo-a até que ela diga o contrário do que diz. O mysterium iniquitatis, o mistério do mal, é terrível, mas real e nos ultrapassa e destrói nossos pressupostos meramente humanos, porque é exatamente isso, um mistério que não cabe bem em nossas cabecinhas limitadas. Sejamos homens e mulheres de verdade e olhemos a realidade na cara em vez de a açucararmos, mesmo que seja terrível, pois o inferno é terrível. Com a graça de Deus, lutemos até a morte contra o pecado e para tirar desse pecado e libertar do inferno o maior número possível de homens, como dizia São Paulo: o amor de Cristo nos anima (2 Cor 5,14) e eu me tornei tudo para todos para salvar alguns por todos os meios necessários (1 Cor 9,22).

Contemplemos a cruz e lá veremos como o pecado e o inferno são terríveis. Cristo levou a sério a gravidade cósmica e radicalmente desumana do pecado do homem e assim se submeteu à morte por nossos pecados e a uma morte na cruz. Ele derramou Seu sangue por nós, o sangue do próprio Deus! Se o inferno fosse apenas uma possibilidade teórica, não haveria necessidade desse milagre de milagres, no qual, para resgatar o escravo, Deus sacrificou o Filho. Isso também é um mistério, e ainda maior do que o do inferno. Tenhamos cuidado para que, ao procurar anular o mistério menor, o do inferno, não estejamos na prática descartando o mistério maior, o da redenção de Cristo. (Fonte: INFOCATOLICA)