Qual é a razão das destituições de prelados conservadores pelo Papa Francisco?
Pergunta — Durante os dez anos de pontificado do Papa Francisco, as numerosas purgas feitas por ele me deixaram perplexo. Destituiu ou privou de seus cargos grande número de bispos e prelados pelo simples fato de serem conservadores e não se alinharem com suas opções pastorais de abertura para o mundo moderno. O primeiro da lista foi Dom Ricardo Livieres, bispo paraguaio vizinho da minha diocese, e o último foi Dom Joseph Strickland, bispo norte-americano; para não falar da longa história de não renovação dos encargos do Cardeal Burke. Daí a minha pergunta: — O Papa tem poder tão absoluto para destituir prelados que não foram acusados de nenhum crime? Os prelados destituídos não poderiam simplesmente continuar em seus cargos?
Padre David Francisquini
Resposta — Infelizmente é inteiramente verdadeiro o que relata o missivista a respeito da atitude do Papa Francisco com aqueles que se opõem a uma diluição da mensagem evangélica sob o pretexto de aproximar a Igreja dos não praticantes e dos que vivem publicamente em pecado. Tal atitude tem suscitado muitas críticas, até de observadores progressistas, os quais percebem quanto isso desacredita a mensagem de misericórdia que ele quer deixar como principal marca de seu pontificado.
Mesmo que o aspecto mais grave da atual crise na Igreja seja de ordem teológica — mudança da própria fé para justificar essa nova atitude pastoral —, não deixa de ser verdade que as medidas quase ditatoriais do atual pontífice causam imensa perplexidade nos fiéis e levantam a questão dos limites do poder papal evocada pelo nosso missivista. Cumpre deixar as noções muito claras, para evitar posições insustentáveis motivadas pelo sentimento de exasperação pelo comportamento incomum do Papa Francisco, como a de afirmar que ele não tem o direito de demitir um bispo a menos que este tenha cometido uma falta grave.
Vamos, então, estudar brevemente a questão do poder de jurisdição do Papa, porque é isso que está envolvido na pergunta.
"Tudo o que ligares… tudo o que desligares"
Como é sabido, no episódio em que Simão confessa que Jesus é "o Cristo, o Filho de Deus vivo", Nosso Senhor responde: "Bem-aventurado és, Simão Bar-Jona, porque não foi a carne e o sangue que te revelaram, mas meu Pai que está nos céus. E eu digo-te que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus: tudo o que ligares sobre a terra, será ligado também nos céus, e tudo o que desatares sobre a terra, será desatado também nos céus." (Mt 16, 16-19).
Nesse episódio nosso divino Redentor estabeleceu que Pedro e seus sucessores devem ser para a Igreja o que o alicerce é em relação a uma casa. Eles devem ser o princípio da unidade, da estabilidade e do crescimento. O Papa é o princípio da unidade, porque o que não estiver unido a ele não faz parte da Igreja; de estabilidade, porque é a firmeza deste alicerce que permite à Igreja permanecer inabalável diante das tempestades que a atingem; de aumento, porque seu crescimento se deve às novas pedras que são colocadas sobre esse alicerce.
Em todos os países, a chave é o símbolo da autoridade. Assim, as palavras de Cristo são uma promessa de que Ele conferirá a Pedro e aos seus sucessores o poder supremo para governar a Igreja. Os papas serão seus vice-regentes, seus vigários, governando em seu lugar. O caráter e a extensão do poder concedido a eles foi bem indicado por Nosso Senhor. É o poder de "ligar" e "desligar" — palavras que denotam a concessão da autoridade legislativa e judicial. Além disso, os poderes conferidos nesta matéria são plenos.
Isto é claramente indicado pela generalidade dos termos empregados: "Tudo o que ligares… tudo o que desligares"; nada é retido. Por isso, a autoridade de Pedro não está subordinada a nenhum superior terreno. Suas sentenças são imediatamente ratificadas no Céu, não precisando da aprovação prévia de qualquer outro poder ou tribunal. Pedro e seus sucessores são independentes de todos os poderes terrenos, exceto do divino Pastor que os nomeou.
Um só redil com um só pastor
Visto que a Igreja é o reino da verdade, todos os seus membros devem submeter-se à doutrina do Evangelho na sua totalidade. O poder supremo na Igreja traz também consigo um magistério supremo: a autoridade para declarar e prescrever uma regra de fé obrigatória para todos. Também nisso Pedro e seus sucessores não estão subordinados a ninguém, exceto ao Mestre divino.
As promessas feitas por Nosso Senhor no episódio acima tiveram seu cumprimento na ceia após a Ressurreição, descrita por São João no capítulo 21 de seu Evangelho. Nessa passagem Jesus, prestes a deixar a Terra, coloca todo o rebanho — tanto as ovelhas quanto os cordeiros — a cargo do Apóstolo Pedro. O termo empregado no versículo 16, "Apascenta [poimaine]as minhas ovelhas" indica que sua tarefa não é apenas alimentar, mas governar, já que Jesus emprega o mesmo verbo do salmo 2: "Tu as governarás [poimaineis]com vara de ferro, quebrá-las-ás qual vaso do oleiro". (v. 9).
Explicitando esses poderes, o Concílio Vaticano I declarou dogmaticamente, no cap. 3 de sua Constituição "Pastor Aeternus", que o Papa possui jurisdição ordinária, imediata e episcopal sobre todos os fiéis:
"Ensinamos, pois, e declaramos que a Igreja Romana, por disposição divina, tem o primado do poder ordinário sobre as outras igrejas, e que este poder de jurisdição do Romano Pontífice, poder verdadeiramente episcopal, é imediato. E a ela [à Igreja Romana] devem-se sujeitar, por dever de subordinação hierárquica e verdadeira obediência, os pastores e os fiéis de qualquer rito e dignidade, tanto cada um em particular, quanto todos em conjunto, não só nas coisas referentes à fé e aos costumes, mas também nas que se referem à disciplina e ao regime da Igreja, propagada por todo o mundo, de tal forma que, guardada a unidade de comunhão e de fé com o Romano Pontífice, a Igreja de Cristo seja um só redil com um só pastor. Esta é a doutrina católica, da qual ninguém pode se desviar, sob pena de perder a fé e a salvação".
O poder de um Papa não é absoluto
Ao dizer que a jurisdição do Papa é ordinária, o Concílio afirma que dita autoridade é exercida pelo titular não em razão de qualquer delegação (recebida do colégio dos bispos ou do conjunto da Igreja), mas em virtude do cargo que ele recebeu de Nosso Senhor ao aceitar o papado. Que a jurisdição seja imediata, significa que o seu possuidor está em relação direta com aqueles de cuja supervisão ele é encarregado. Se, pelo contrário, a autoridade suprema só pudesse lidar diretamente com os superiores imediatos, mas não com os súditos, salvo mediante a intervenção dos primeiros, o seu poder não seria imediato, mas mediato. Por isso, qualquer fiel pode recorrer diretamente ao Papa de uma decisão tomada pelo seu bispo ou por outro superior intermediário.
Essa doutrina do poder imediato tinha sido negada previamente por Febrônio, no fim do século XVIII. Esse escritor afirmava que o dever do Papa era exercer uma supervisão geral sobre a Igreja e dirigir os bispos por meio dos seus conselhos; em caso de necessidade, quando o pastor legítimo fosse culpado de grave injustiça, ele poderia pronunciar sentença de excomunhão contra ele e proceder contra ele de acordo com os cânones, mas não poderia, por sua própria autoridade, depô-lo do cargo se não fosse culpado de crime.
Em alguns círculos tradicionalistas essa mesma ideia está sendo veiculada, apoiada não em Febrônio, cujos escritos tinham sido condenados pelo Papa Pio VI, mas na Constituição Conciliar "Lumen Gentium" do Concílio Vaticano II. Eles alegam que, nesse documento, é declarado que os bispos possuem um poder "próprio, ordinário e imediato", ou seja, que recebem a jurisdição episcopal diretamente de Jesus Cristo. Assim sendo, o Papa não poderia demitir um bispo sem causa grave. Acontece que esse ensinamento do Vaticano II, que serviu para tentar justificar a existência de um poder supremo permanente do conjunto dos bispos, em união com o Papa, sobre toda a Igreja (nisso consiste a famosa "colegialidade"), é contrário ao que a Igreja ensinava até então.
Pio XII, de fato, ensinou três vezes que a jurisdição de direito divino dos bispos, enquanto sucessores dos Apóstolos, certamente emana de Jesus Cristo (como toda a jurisdição, aliás), mas é recebida do Sucessor de Pedro, pela sua mediação. Na encíclica Mystici Corporis (29 de junho de 1943), ele escreveu: "Se eles [os bispos diocesanos] gozam do poder ordinário de jurisdição, esse poder é imediatamente [grifo nosso] comunicado a eles pelo Sumo Pontífice". E, no contexto do cisma da Igreja Patriótica da China, na encíclica Ad sinarum gentem (7 de outubro de 1954), afirmou: "O poder de jurisdição, que é conferido diretamente ao Sumo Pontífice por direito divino, chega aos bispos pelo mesmo direito, mas unicamente através do sucessor de São Pedro"; e também na encíclica Ad Apostolorum Principis (29 de junho de 1958), ele declarou: "A jurisdição só chega aos bispos por intermédio do Romano Pontífice".
Daí o fato de o Papa poder não somente escolher e nomear os bispos para as diferentes dioceses, mas também mudá-los de diocese ou destituí-los, ainda que não tenham cometido falta alguma, mas por um benefício para a Igreja (real ou suposto). Por exemplo, após a descolonização da África, foi pedida a demissão a todos os bispos europeus que governavam numerosas dioceses, para nomear bispos autóctones. Se algum tivesse se recusado, o Papa poderia destituí-lo.
Algo do gênero aconteceu após a Concordata entre o Papa Pio VII e Napoleão, uma de suas cláusulas, imposta pelo usurpador, foi de que renunciassem às suas dioceses todos os antigos bispos que tinham emigrado da França durante a perseguição religiosa da Revolução Francesa. Mais de 30 desses bispos não se demitiram e o Papa os destituiu. O Papa fez obviamente muito mal aceitando dita concordata (posteriormente ele fez uma declaração de arrependimento num consistório de cardeais), mas o que interessa no caso é que todos os bispos destituídos aceitaram a injustiça e apenas três continuaram a se declarar legítimos bispos de suas antigas dioceses, iniciando o cisma da chamada Petite Église.
Outra vítima de uma destituição clamorosa foi o heroico Cardeal Josef Mindszenty, primaz da Hungria, sacrificado em aras à Ostpolitik do Vaticano com os regimes comunistas. Ele condenou essa política e sua destituição, mas não se rebelou contra Paulo VI.
Significa isso que o poder do Papa é absoluto? — De nenhuma maneira, porque ele não está acima da Igreja, mas no seu interior, como um membro batizado, encarregado precisamente de preservar a fé e a instituição hierárquica que recebeu de seu divino Fundador. O Papa está evidentemente submetido ao direito divino, tanto ao revelado quanto ao natural, estando unicamente acima do direito eclesiástico positivo. Ele não poderia, por exemplo, eliminar os bispos ou negar o poder ordinário de que gozam para apascentar suas dioceses respectivas, enquanto sucessores dos Apóstolos, porque isso seria contrário ao direito divino revelado.
O Pontífice deve atuar para edificar, não para destruir
Outrossim, o cânon 333 § 2 do atual Código de Direito Canônico afirma explicitamente que o Romano Pontífice, no desempenho do seu múnus de Pastor supremo da Igreja, embora tenha o direito de determinar o modo do exercício de seu múnus, deve exercê-lo "segundo as necessidades da Igreja". Ou seja, não por um capricho qualquer. Afirma, porém, em conformidade com o ensinamento tradicional: "Contra uma sentença ou decreto do Romano Pontífice não há apelação nem recurso", precisamente por ser o Pastor Supremo.
No que se refere ao direito divino natural, mencionado acima, o Papa não poderia desconhecer os direitos que emanam da natureza humana, como são o direito à vida, à privacidade, ao bom nome, ou ainda, à presunção de inocência ou ao direito de defesa num processo justo.
Cremos que as decisões chocantes do Papa Francisco, mencionadas na pergunta de nosso missivista, merecem a advertência feita recentemente por Geraldina Boni, Professora de Direito Canônico, Direito Eclesiástico e História do Direito Canônico no Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Alma Mater Studiorum, de Bolonha. Diz a ilustre canonista: quem está investido do poder supremo da Igreja, "mesmo que não esteja sujeito a qualquer controle ou supervisão, apelo ou recurso de qualquer agência humana, não deve por esta razão se considerar supra ius divinum [acima do direito divino] e dispensado do dever de operar constantemente intuitu utilitatis Ecclesiae vel fidelium— em vista da utilidade da Igreja ou dos fiéis (Lumen gentium, 27a), sempre in ædificationem et non in destructionem [para edificar, não para destruir] (como foi assinalado no Vaticano I, recordando 2 Cor 10,8), cabendo ao 'próprio Pedro apoiar e manter a Igreja unida e firme numa estrutura indissolúvel' (Leão XIII, Encíclica Satis cognitum, 1896), como 'princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade dos bispos e da multidão dos fiéis' (Lumen gentium, 23)."
Se um Papa se afastar dessa conduta e enveredar por um estilo de governo inteiramente arbitrário, ditatorial ou, pior ainda, fomentador de heresias, um dos direitos que nenhum Papa pode negar aos fiéis é o de lhe resistir em face, como São Paulo fez com São Pedro, como ele mesmo relata na sua epístola aos Gálatas (2, 11-14).(Fonte: Agência Boa Imprensa )