SÃO PIO X – Fortaleceu a igreja, fulminou a heresia

22/08/2024

Neste mês a Santa Igreja celebra 110 anos do trânsito de São Pio X ao Céu, ocorrido em 20 de agosto de 1914. O único Papa canonizado no século XX, ele combateu intrepidamente a heresia modernista, reformou o clero, recodificou o Direito Canônico e incrementou admiravelmente a piedade católica.

Por Plinio Maria Solimeo

Quando faleceu Leão XIII, em 1903, a expectativa geral era quem manobraria o leme de Pedro naqueles tempos já tão conturbados.

O mundo estava febrilmente contagiado pelo liberalismo anticlerical, um dos perniciosos frutos da Revolução Francesa que tornavam tensas as relações entre a Sé Apostólica e várias nações europeias. A revolução industrial, por sua vez, criava situações propícias à propaganda dos princípios marxistas da luta de classes e do anarquismo no meio proletário nascente.

A situação era crítica inclusive nas nações católicas. Na Itália, um governo usurpador e violento privara o Romano Pontífice de seus Estados, confinando-o ao Vaticano, e criava empecilhos à ação da Igreja. Na França, uma oligarquia maçônica –– cujos expoentes eram Briand, Clemenceau, Waldeck-Rousseau e Combes –– impôs a aprovação de diversas leis frontalmente antirreligiosas, preparando terreno para a separação entre a Igreja e o Estado em 1905.

Portugal via-se às voltas com a fermentação revolucionária que culminaria no assassinato do rei Dom Manuel e do Príncipe herdeiro em 1908, e com a proclamação da República dois anos depois. Sem falar de uma série de medidas contra a Igreja, como a expulsão dos jesuítas, a supressão de congregações religiosas e a aprovação do divórcio.

Também na outrora fiel e católica Espanha os ventos liberais e anarquistas sopravam com violência, chegando-se à tentativa de assassinar o rei Afonso XIII no próprio dia de suas bodas. E o império Austro-Húngaro apresentava tantos sintomas de decadência religiosa e moral, que a todo instante se temia sua ruína.

Não menos trágica para Igreja e a civilização cristã era a situação no maior bloco católico do universo, a América Latina, onde as jovens nações emulavam em impiedade com suas maiores europeias.

No Brasil, a célebre "Questão Religiosa" conseguira levar à barra dos tribunais e condenar à prisão perpétua com trabalhos forçados o intrépido bispo de Olinda, Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira. No Equador, líderes católicos são perseguidos e forçados a exilar-se. No México, as nuvens da tormenta revolucionária já se acumulavam no horizonte para pouco depois se desencadearem numa das mais cruéis e implacáveis perseguições religiosas conhecidas pelo mundo moderno.

Sobretudo, no próprio interior da Igreja a situação era grave. Erros filosóficos muito em voga, como o naturalismo, o racionalismo e o cientificismo, ao par de forte liberalismo, influenciavam extensamente a teologia e deturpavam a fé, ao mesmo tempo que esfriavam nas almas o amor de Deus.

Tais erros haviam penetrado a fundo em amplas camadas do Clero, em estabelecimentos de ensino, mesmo em seminários, criando um espírito de novidade e de revolta crescente que ameaçava fazer soçobrar a Barca de Pedro, não tivesse ela a promessa da perenidade.

Para fazer face a esse terrível panorama, tornava-se necessário o advento de um Papa que se colocasse entre os maiores da História da Igreja. Por obra do Divino Espírito Santo, que não abandona a Sua Esposa Mística, e a rogos de Maria, o mundo teve o Pontífice de que necessitava: Giuseppe Sarto, Patriarca de Veneza, eleito com o nome de Pio X.

Suave… mas forte

Quem era Pio X, o novo Papa de cuja bondade e doçura tanto se falava em Veneza, de onde viera como Cardeal-Patriarca? Um "conciliador", pensava o Governo italiano, entendendo por essa designação um homem fraco, pronto a entrar em acordo com a Revolução. Entretanto, a famosa bênção Urbi et Orbi, o primeiro ato do Pontífice, foi dada de um dos balcões internos da Basílica de São Pedro para ratificar o protesto de seus antecessores contra a tomada de Roma pelas tropas revolucionárias.

Um "cura rural", não habituado às pompas do Vaticano nem ao trato com os grandes, pensavam os embaixadores e enviados de potências estrangeiras. Não foi a impressão que Pio X deixou após a primeira audiência geral, quando o representante da Prússia, exprimindo o pensamento dos demais diplomatas, perguntou a Mons. Merry del Val, Secretário de Estado interino, ao sair da Sala do Trono: "Diga-nos, Monsenhor, o que há nesse homem que tanto atrai? Um Santo –– dirá esse eclesiástico, posteriormente elevado a Cardeal, que teria um papel tão importante nesse Pontificado ––, porque ele é um homem de Deus".(1)

Para o Abbé de Cigala, capelão do Conclave, "a força dos traços e a doçura do olhar, frutos de uma vida interior e fé" ardentes, faziam crer "numa ressurreição do imortal Pio IX".(2) Mas, esclarece o Cardeal Mercier, Arcebispo de Malinas, na Bélgica: "A invencível gentileza do Santo Padre nada tinha do sentimentalismo dos fracos: Pio X era um forte"(3)

Isso o reconheceu também o ex-chanceler do Império alemão, o Príncipe Von Bülow, conta ao Cardeal Merry del Val, após uma entrevista: "Eu me encontrei com muitos monarcas e legisladores, mas raramente encontrei em algum deles uma tão remarcável percepção da natureza humana ou um conhecimento como o que Sua Santidade possui das forças que governam o mundo e a sociedade moderna"(4). E, realmente, proclamará muito depois Pio XII que, "com seu olhar de águia mais perspicaz e mais seguro que a curta vista dos míopes raciocinadores, via o mundo tal qual era, via a missão da Igreja no mundo[…] e seu dever no seio de uma sociedade descristianizada […] contaminada pelos erros do tempo e pela perversidade do século".(5)

"Restaurar tudo em Cristo"

O Pontificado de São Pio X
pode ser sintetizado no roteiro por ele
traçado em sua Encíclica-Programa:
"Restaurar tudo em Cristo".

O historiador R. Aubert afirma que São Pio X foi essencialmente um reformador –– o maior deles depois do Concílio de Trento(6) ––, e que a reforma por ele empreendida era bem exatamente o contrário da desejada hoje por tantos eclesiásticos para os quais reformar significa incorporar à Igreja os erros modernos. Para o Santo, reformar foi extirpar da Igreja as heresias que nela se haviam introduzido. E o já referido Cardeal Mercier se pergunta: "Se houvesse na Igreja, na época de Lutero e Calvino, um Papa da têmpera de Pio X, teria conseguido o protestantismo levar um terço da Europa ao rompimento com Roma?"(7)

O Pontificado de São Pio X pode ser sintetizado no roteiro por ele traçado em sua Encíclica-Programa: "Restaurar tudo em Cristo". Essa preocupação o Pontífice já a tivera quando era Bispo de Mântua. Depois, como Cardeal de Veneza, sua primeira Carta Pastoral continha, em linhas gerais, o pensamento da Encíclica.

Em síntese, diz São Pio X que a apostasia do mundo, "essa detestável e monstruosa iniquidade […] pela qual o homem se substitui a Deus", manifesta uma tal "perversão dos espíritos", que é de se perguntar se já não se deu o advento do "filho da perversão". Pois o modo com que "se lança ao ataque da religião, se investe contra os dogmas da fé, se tende obstinadamente a aniquilar toda relação do homem com a Divindade" é uma das características do Anticristo.

Para haver uma restauração, os bons devem "proclamar bem alto as verdades ensinadas pela Igreja sobre a santidade do matrimônio, a educação da infância, a posse e uso dos bens temporais, sobre os deveres dos que administram a coisa pública". Ora, se não houver verdadeiros sacerdotes, "revestidos de Cristo", isso não será possível. Portanto, deve-se proceder a uma reforma dos seminários e vigiar para que os novos sacerdotes não se deixem seduzir "pelas manobras insidiosas de uma certa ciência nova".

"No dia em que, em cada cidade, em cada aldeia, a lei do Senhor for cuidadosamente guardada […] nada mais faltará para que contemplemos a restauração de todas as coisas em Cristo". Com isso, mesmo "os interesses temporais e a prosperidade pública" também felizmente se ressentirão.(8) E ter-se-á na terra a "paz de Cristo, no Reino de Cristo".

Não cabe analisar aqui o pontificado de São Pio X para constatar como ele seguiu à risca este programa. Só o que foi publicado de Cartas Apostólicas, Motu Proprio, Encíclicas, e discursos, ultrapassa a casa dos 350. Se a isso se somam os decretos das Congregações romanas e os diversos documentos emanados da Secretaria de Estado, aos quais o Papa não podia ser estranho, chega-se ao número de 3322(9), o que torna esses onze anos de pontificado um dos mais fecundos da História da Igreja.(10)

Basta pensar no trabalho monumental de recodificação do Direito Canônico, que durou todo o Pontificado de São Pio X, sendo promulgado só no de Bento XV; na fundação do Instituto Bíblico; na reforma da Cúria Romana; na instituição da Acta Apostolicae Sedis,noticiário oficial do Vaticano; na reforma do Breviário Romano; em normas dadas para a disciplina e reforma do Clero, além de todas as medidas para facilitar a comunhão frequente dos fiéis, antecipar a Primeira Comunhão das crianças, regulamentar a comunhão dos enfermos, elaborar adequadamente o catecismo, orientar o cântico litúrgico etc.

O modernismo

Ao condenar o movimento Sillon –– em muitos pontos precursor do atual progressismo –– afirma São Pio X que ele "semeia […] noções erradas e funestas […] Para ele, toda desigualdade de condição é uma injustiça ou, pelo menos, uma justiça menor! Princípio soberanamente contrário à natureza das coisas, gerador de inveja e de injustiça, subversivo de toda ordem social".(11)

Entretanto, foi a seita modernista infiltrada na Igreja –– qualificada por ele de "síntese de todas as heresias" ––a que mais o fez sofrer e mais preocupações lhe trouxe, por sua profunda nocividade e subtileza. Além de numerosos atos, três importantes documentos emanaram de São Pio X para condená-la: o Decreto Lamentabili sane exitu, de 4 de julho de 1907, que condena 65 proposições modernistas; a Encíclica Pascendi dominici gregis, de 8 de setembro do mesmo ano, na qual condena diretamente o modernismo –– a mais longa de seu pontificado, devido à delicadeza da matéria; e, finalmente, o Motu Proprio Praestantia Scripturae sacrae, de 18 de novembro do mesmo ano.

São Pio X, elevado à honra dos altares por Pio XII em 1954, seja junto à Virgem Santíssima e a seu Divino Filho o grande intercessor de todos os católicos que lutam em nossos dias para permanecerem fiéis à Santa Igreja e à sua verdadeira doutrina.

O Santo Pontífice, que soube tão bem desmascarar e condenar o modernismo, certamente obterá abundantes graças para os fiéis de nossa época, muito pior do que a época daquela heresia. Sim, a trágica era em que vivemos, na qual, segundo expressões de Paulo VI, tem curso um misterioso processo de "autodemolição da Igreja", tendo nela penetrado a "fumaça de Satanás". (Fonte: Agência Boa Imprensa)